sábado, outubro 28, 2006

Diálogo final

De repente, a brisa congela, o olhar fixa num ponto a tender ao infinito, as mãos trêmulas suam frio, as veias dilatam-se a fim de permitir maior passagem de sangue para nutrir o descontrole acelerado do coração, sente-se a total ausência de qualquer forma de esperança; e, após um segundo de lapso, a máquina da vida volta a funcionar, não como antes, mas num mesmo ritmo contínuo de segundos.
A vida não é mais a mesma depois da notícia cuspida do médico de que o meu tempo já não possuía um futuro incerto, e sim o de seis meses e vinte dias. Meu corpo agora começa a entrar em estado de putrefação; olho-me ao espelho e a face que se revela é dela: da morte. Ela me fita com um sorriso malicioso a saltar de seus lábios secos e frígidos, mas nada me amedronta, encaro-a como a mim mesma, já que sempre tive a certeza de sua constante presença a meu lado.
Hoje, no último dia de minha curta existência, a imagem refletida no espelho indaga-me sobre meus intuitos para as horas antecedentes à consumação do inevitável. Meu semblante contrai-se e memórias de duas décadas passam em minha mente como se eu tivesse aberto um álbum de fotografias dentro de mim. Recordo minha infância, de como as coisas eram simples; o dia em que fui expulsa de casa; os amantes de todas as noites, necessários ao meu sustento; e, finalmente, o dia em que soube do novo habitante em meu corpo: o vírus HIV. Imediatamente veio a resposta àquele questionamento: “Meu único desejo é o de conversar com meus pais, contar-lhes como sou, pedir-lhes perdão e lhes dizer do meu amor por eles”.“Pensas que eles irão aceitar-te desse jeito?” “Não importa – disse com lágrimas aos olhos – não estarei viva amanhã para sofrer a possível rejeição e enfim poderei morrer feliz. Aliás, tu, que farias?” “Eu?” – disse espantada. “Gostaria de saber como é viver”.- concluiu. “Viver? Só se dá conta da vida quando se está prestes a morrer!” – exclamei, e continuei: “É nessa hora que se pensa em tudo aquilo não feito por medo, insegurança ou culpa. E é justo no ínfimo momento que vem a louca vontade de realizar tudo quanto foi controlado e sufocado, como um vômito preso na garganta. O motivo? Simples, não se sabe quais serão as conseqüências dos atos pré-póstumos. O teu desejo é igual ao de muitos: ter vida no último dia, quanto no resto deles a única coisa que se teve foi morte”.


Acaná.