quinta-feira, setembro 07, 2006

Amargo

As fotos já não as mesmas, você cresceu. Os olhos não vêem só o que parece ser. Não é mais sua mãe quem te acorda, é um tal de 'bip bip bip' que só pára quando aperta o 'soneca'. Você levanta, vai até a cozinha e não há sua mãe preparando o café, terá que o fazer sozinho. Abre a geladeira e percebe que acabaram tomates e cebolas e as frutas jazem apodrecidas. Faz a lista do supermercado e vai às compras. Não pega mais aquele carrinho onde tinha a cadeirinha para sentar, pois infelizmente seu quadril cresceu de mais para entrar ali. Analisa os preços mais em conta; lembra-se de que a conta de luz veio alta e não pode levar aquele chocolate que seu pai sempre comprava depois de muita insistência. Vai até ao caixa e passa o cartão. Aqui está seu recibo senhor, a moça lhe diz. Senhor? -você pensa- mas até ontem eu ainda era um menino... Pega as sacolas, diz 'obrigado' e vai para casa. Chega ao prédio e vê crianças correndo e gritando. Surge uma louca vontade de ficar ali observando-as conversar; falam sobre o colégio, parece que uma tal de Alice brigou com a Ana e 'estão de mal'. Chega mais perto, a curiosidade pede pra saber mais. Ah, entende, Alice disse um segredo de Ana a outra menina, não era pra ter dito. De repente surge outra menina; uma delas fica com cara de raiva, a outra diz para se entenderem, pega nas mãos de ambas e une-as como numa maneira de tentar reconciliá-las. Olham-se meio de esguela e como que num súbito, se abraçam, pedem-se desculpas e saem planejando a brincadeira do dia. Lembra do que pensava alguns minutos antes: sobre estudos, futuro, casamento, compras, contas. Entende que é igual a seus pais, com os mesmos 'problemas' que achava tão idiotas. Recorda do dia em que viu seu pai chorar- 'pais não choram, só eu posso chorar, eles são heróis, tão grandes! Têm que me proteger sempre, nunca podem morrer.'- havia pensado com lágrimas nos olhos só de imaginar sua vida sem eles. Percebe que daqui a uns anos estará no lugar do herói, tendo que se mostrar forte como gostava de ver seus pais. Os lugares estão sendo trocados, eu cresci, é, sou quase adulto- diz a si mesmo odiando ter que aceitar a idéia. Imagens de dez anos passam em sua cabeça, uma década de lembranças! Antes você tinha algumas vagas memórias de quando era menor. Agora tem uma dezena de anos em fotografias fixadas na memória. Sua vida tem um passado regado de inúmeras histórias, um presente volátil e esperanças de um futuro onde lutará para realizar todos os seus sonhos. Lembra de como era tão mais fácil quando era criança, pois não se prendia nem ao passado nem ao futuro, não pensava sobre o mundo e as pessoas; vivia, apenas, sem enteder o porquê, sem buscá-lo. Depois desse lapso, a realidade de um mundo falso - o qual vive- cai sobre sua cabeça. É hora de acordar de um sonho há muito acabado para um mundo onde jamais pensou em viver. Entra no elevador; pega as chaves e abre a porta de casa; vai até ao fogão e faz um café - amargo- como o gosto de ter crescido.

Acaná.

2 comentários:

Maurício disse...

uma bela descrição do doce gosto amargo da vida

cauã

Marcelo Ribeiro disse...

Eu tenho encarado as coisas assim. É gostoso sentir essa tristezinha de não ser mais dependente. Você lembra como era bom ficar batendo papo e contando todas as mentiras que sua imaginação pudesse conceber para seus amiguinhos. E assim, passávamos horas rindo e contando histórias incoerentes, feéricas, beirando muitas vezes, o impossível. Somos adultos, essa é a verdade e precisamos acordar pro mundo que nos agora pertence e fazer dele não algo infantil [pois não podemos jogar os anos de experiência fora], mas algo da extrema beleza do amadurecimento.

beijoca
lindo texto
fiquei emocionado